domingo, 12 de abril de 2015

DEVANEIOS - DE O HOMEM E O PEIXE E DE MANGAR

Tenho Cara De Antigamente, Quando Querer Era Poder
COM A GRAÇA DA PIETÁ CUMPRO ESSE TRABALHO
Filhote Do Jumentinho De Maria E Jesus

Conto De Altair Andrade Cruz replicado Com Conto De Edélvio Coelho Lindoso


O homem abriu a portinha de casa e olhou o tempo. O último dia do ano findaria a meia noite daquele dia que iria nascer daqui a pouco. A companheira e os cinco filhos dormiam. Bom que dormissem, assim não sentiam fome. A luz do dia ainda era somente um anúncio de um claro no céu. Tudo é silêncio. As estrelinhas da madrugada já pequeninas formam um bordado de luz no manto de vaga cor azul. Passo a passo o homem andava na noite ainda. As pernas finas o levariam ao seu destino onde os pensamentos se acabam e a pobreza também. Sente pena da família que naquele momento nada sente. É que lá do outro lado do sono tudo é diferente do lado de cá da vida. Sem ele a mulher daria um jeito, ela sempre achava um meio de alegrar a casa e fazê-lo sorrir. Do nada do jantar que não houve  ontem Maria Rita  fazia um almoço de hoje juntando restos das casas dos outros: “Vem comer, home de Deus! Dá pra tu também! Tá tão bom!”. Era sempre assim, desde que ele havia se amofinado. Não buscava mais lutar. Não entendia, mas nele se instalara a depressão, uma doença da alma que não tem alento que passe, não tem palavras que ajudem. Uma doença que vela a luz do sol, prende a vontade de fazer alguma coisa, que  puxa dos abismos humanos todos os golpes recebidos durante muito tempo. Teria coragem e se atiraria no rio de águas profundas.
O RIO É ALTIVO E DESTEMIDO E NÃO AMA NINGUÉM, POIS VAI SEMPRE EMBORA PARA O MAR SEM SAUDADE
Chega à beira do rio junto com os primeiros raios dourados do sol. Senta no verde capim que se esparrama adornando a areia. Não sabe se pensa ou não. Sabe que a decisão está tomada e não tem medo. Apenas demora um pouco olhando o espelho das águas que passam e nunca voltam. Gosta do rio. O rio é altivo e destemido e não ama ninguém, pois vai sempre embora para o mar sem saudade alguma das flores das várzeas, dos passarinhos dos galhos, das pedrinhas do seu leito, dos moluscos nativos e das mulheres que lavam roupas e se banham nuas nas suas águas caudalosas.
O ENCONTRO COM O PEIXE ROSADO PRATEADO COM REFLEXOS IRISADOS
Rumorejam as águas do rio que passa. É um canto de morte. Buuuuum, plooooft!  Não! É um peixe rosado, grande e rutilante que emerge e ao lado de um cesto de pesca flutuante lhe fala:
“Homem! Vou te ajudar. Nesta cesta estão as fases da tua vida até agora.  São quatro novelos de lã coloridos. No primeiro de cor branca verás as tuas primeiras experiências de vida quando pequena criança; no segundo novelo de cor amarela verás a tua infância; no terceiro novelo de cor azul hás de te ver rapaz; no quarto novelo de cor preta hás de ver a tua vida até esse momento. Vou te entregar por ordem cronológica cada um deles. Pegai cada novelo e aquilo que desejas que nunca haja feito parte da tua vida solta a linha do novelo para desfazê-lo e ela te precipitará nos abismos das minhas águas”.
VIU A PORTINHA DE CASA POR ONDE SAIU ANTES DO AMANHECER  E  POR  ELA ENTROU DE VOLTA
Buuuuum, plooooft!  O homem pegou o primeiro novelo – o  de cor branca e viu-se  na casa tão querida e bonita em que havia nascido e vivido sua infância. Ali estavam  o pai e a mãe bem jovens na festinha do seu primeiro aniversário. Havia  música, risos, brinquedos, enfeites, e amigos e parentes convidados para a lauta mesa de bolos e doces. Mas, o homem colocou de volta sem soltar-lhe o fio  o  novelo branco no cesto e o peixe submergiu e levou o cesto. Queria que aquele momento estivesse em sua vida sim.
Buuuuum, plooooft!  De novo o grande peixe emergiu e lhe entregou o segundo novelo – o de cor amarela. Estava com os coleguinhas e corriam nos campos verdes atrás de uma pipa colorida que descia do céu azul e saltou quase em cima da sua cabeça,  os cadernos da escola se espalhavam pelo caminho e ele ria muito, feliz porque o brinquedo agora era só seu. Mas, o homem colocou de volta sem soltar-lhe o fio  o  novelo amarelo no cesto. Queria ter tido na vida aquele instante sim.
Buuuuum, plooooft!  Outra vez o peixe emergiu do fundo do rio e lhe deu o terceiro novelo – o de cor azul. Na manhã de sol esperava Maria Rita sentado na escadaria da escola. Ela chegou sorrindo e sentou ao seu lado. Um perfume de mato verde e chuva se misturavam ao cheiro de pão torrado e café. Se encheu de coragem e pediu: “me dá  um beijo”. Ela saiu correndo. Maria Rita ria e soltava o beijo de longe pelo final da palma da mão. Outra vez  então o homem colocou de volta sem soltar-lhe o fio  o  novelo azul  no cesto. Queria ter vivido aquele momento sim.
Buuuuum, plooooft!  Dessa vez o grande peixe prateado iridescente emergiu do fundo do rio e deixou flutuando nas águas o cesto de pesca com todos os quatro novelos  de lã nas cores  branca, amarela, azul e dentre eles o novelo de cor negra. O homem retirou o novelo preto de dentro do cesto. Viu a portinha de casa por onde saiu antes do amanhecer e por ela entrou de volta. A mulher adoçava o café, e o pão de milho amarrado no pano de prato,  de cabeça para baixo na tampa de panela, cheirava, cheirava. Os cinco filhos sentadinhos no chão esperavam o repartir do pão. A voz macia que vem lá de perto da trempe de fogo que cozinha o pão convida: “Vem comer, home de Deus! Dá pra tu também! Tá tão bom!”. O homem coloca o novelo de lã de cor preta no cesto. Como puxar o fio daquele novelo!? Se puxar a linha vai lançá-lo  para as caudalosas águas do rio e não verá mais a sua casinha pobre, a sua mulher cuidadosa, os cinco filhos que aqui e ali riem baixinho “para num zangar o pai”. Queria aquela mulher, aquele momento, aqueles filhos sim.
NA SOMBRA DO ZÊNITE O HOMEM NÃO TEM SOMBRAS – NEM PARA FRENTE E NEM PARA TRÁS
Quer dizer ao peixe que não conseguiu desmanchar nenhum dos novelos, mas, somente o rumor das águas do rio caminho das águas que vão e nunca mais voltam passam cheias diante dos seus olhos.
Suas pernas finas o levam de volta para casa. Já é meio dia. Na sombra do zênite o homem não tem sombras – nem para frente e nem para trás.
Entra em casa. Coloca o cesto em cima da pedra da sala onde está pregada na parede roída a imagem da família sagrada: José, Maria e Jesus.
O dia passa. A noite vem. Amanhece de novo. A voz da mulher se repete aos gritos até  Zé acordar. “Zé ! Zé! Debaixo dos santos tem uma cesta com quatro bolas de ouro! Zé! Zé!...”
Debaixo do sol a pino Zé  e família vão ao centro da cidade  a pé levando embrulhado num pano um cesto. Entram na igreja e Zé vai para o confessionário. Depois de um tempo a família composta de sete pessoas se encaminha com Zé de cesto embrulhado no pano velho para uma agência bancária e diante da moça elegante o Zé de pernas finas pingando suor  pergunta onde fica o setor que compra ouro.
... Madrugada antes do alvorecer. O carro luxuoso estaciona perto do rio e um homem forte com roupa de grife se encaminha para a beira do rio. Muitas  das vezes viaja do exterior no fim do ano para visitar o rio e encontrar o peixe rosado prateado com reflexos irisados.  Por longo tempo espera o reencontro com o peixe prateado furta-cor, grande e brilhante. Há quase uma hora as águas passam céleres sem volta, rumo ao mar. Nenhum peixe vem à tona. Por toda a vida do homem ele repete essa visita ao rio de águas caudalosas na madrugada da  manhã que antecede a data do Ano Novo.
Um dia, já idoso faz a visita e pede ao motorista que o deixe só, no capim verde da  beira do rio. O motorista o encontra meia hora depois quando o sol já havia nascido. Sentado, sem vida de olhos abertos, olhando para as águas que passam e vão para o mar, sem saudade das várzeas, dos passarinhos, dos moluscos nativos, das pedras, das flores, dos caminhos, e dos grãos de areia do seu leito.
Tudo está escrito no livro da vida? O livre arbítrio existe? Lá do outro lado do sono tudo é diferente do lado de cá da vida? Na sombra do zênite o homem não tem sombras – nem para frente e nem para trás? E no nadir o homem desaparece?



segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015


DEVANEIOS - DE MANGAR

Tenho Cara De Antigamente, Quando Caçoar Era Mangar
MANGAÇÃO ÉO ASSASSINATO DO MANGADO 
Reclame De 
Remédio De Antigamente

Triste do mangado.  Qem manga ni mim é um sem coração. Eu me encolho, corro, me escondo e fico mais pequenininho quando alguém manga ni mim.  Seje por causo que de uma camisa feita na alfaiataria mamãe. De uma alpargata mal enfiada.  De uma calça sungada.  Purque com essas coisas vocè faz o mundo mais desinfeliz.  Mas, minha mãe gosta de mim, me abraça e ela é quentinha, bota a mão espalmada na minha testa e empurra pra trás, é o seu carinho, e nele eu sinto que tenho jeito, que tenho canto.  Nem me importo que me chamem de feiurinha, de todo troncho, de tampinha, de toco de amarrar jumento, só levo em conta de não contar em casa essas aporrinhações que na verdade acabam com a minha beleza.

Minha mãe era gentil, ela dizia para eu rir para os outros com todos os dentes;  coitada, esquecia que eu era banguelo, que me faltavam dois dentes e que eu não podia morder.  Oh, preguiça, sai de cima de mim, gritava ela;  pensa que sou tua mãe?  É verdade, ela era malcriada, mas eu nem ligava porque, se eu fizesse cara de choro, era ela quem corria pra cima de mim e seu arrebatamento era como o abraço da Santa Maria protegendo o menino Jesus.  

A nãe não fazia mangação de eu;  só ria ca boca troncha e os quatro dedos em cima dela, porque o cata-piolho ficava em baixo do queixo.  Bença, mãe, e eu saia correndo, com alegria no coração,  com  a caixa de lapis johan Faber cheirosa que eu ia cheirando, pensando que a felicidade do mundo morava em mim.  Oi, fedegoso;  o grito me atingia, mas eu fugia dele;  o riso da professora, d. ritinha, substituia o da minha mãe;  eu a achava bonitinha; era engraçadinha e passava os dedos no meio da minha cabeleira, eu me sentia abençoado.  Hoje, velho, mesmo tendo continuado pequeno eu penso;  mas que menino carente era aquele!  Na volta eu apertava os lapis coloridos, meus verdadeiros amigos.  Eles não me diziam nada, mas eu os sentia comigo.

Mãinha estava roxa, os olhos revirava e ela tão pequeninita respirava com sofreguidão.  Uns dizia, era derrame e eu me lembrava da palmada dela quando eu derramei a caçarola do leite em cima do fogão de lenha.  Mãe, eu diza comigo, chorando e com a voz apertada, eu fico na cozinha com o lombo descoberto e tu podes dar quantas lambada quiseres, mas não me deixes só.  Eu não gosto quando mangam ni mim  e se tu não empurrar minha cabeça pra trás e disser, preguiça, tu quer banana, eu fico abilolado, sem o sorriso dos dentes eu me sinto orfa.  Mãezita, para com isso, eu vou esconder tua rede, que eu sei muito bem para que ela serve quando a gente não serve mais.  

Me encolhi no pé da cama dela, arfava, larguei os lapis queridos que cairam da caixa, meu irmão pequenitito agarrou um e se lambusou com sua cor preta, cor da morte.  Eu nem liguei, eu estava só, agora minha dor era gigante, coisa que nunca conheci;  chorei, chorei, chorei...

Afelò, pirulito, tengo-tengo lengo-lengo, olha o cavaco, passava tudo isso na rua, no meu bairro, mas que bairro, aquilo era buraco mesmo, era o buraco em que eu vivia, em que era alegre e era seguro, o buraco onde eu tinha  minha mãe, onde os valores eram altos, as querências eram muitas, embora o cheiro de pobreza superasse tudo.  Mãe querida, "trago-te flores, restos arrancados da terra que nos viu passar unidos e ora morta, nos deixa separados".

Pobreza, mangação, com mãe, é melhor do que riqueza e cheiro de parisiana em frascos de litro, sem mãe

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