domingo, 24 de agosto de 2014

DEVANEIOS - DE CAFÉ HISTÓRIA




E que estão lá, no centro da minha cidade em uma linda casa que eu amava, na Rua Castro e Silva de número 305, que antes teve o nome de Rua das Flores. Hoje aquela casa que era grande porque eu era pequena daquela rua boêmia do centro da cidade que destrói edificações históricas e se envergonha de ter memórias, bem junto ao mar, não é mais a minha casa. Uma rua pequena e curtinha que nasce ou morre, tanto faz, entre a Igreja da Sé e o Cemitério São João Batista, bem atrás da Santa Casa de Misericórdia, no centro histórico de Fortaleza. Horas avançadas da noite, faço uma viagem no tempo, até às primeiras reminiscências, indeléveis, plenas de detalhes. Mergulho... Estou na bacia de alumínio Ironte. Dispostos carinhosamente sobre o espaldar da cadeira de vime estão a toalha de felpo Artex, o sabonete Lifebuoy e o talco Gessy. Devidamente enxuta e perfumada, chega a vez de vestir a fralda de murim, comprado nas Casas Novas, famoso armazém de tecidos. A papinha de “leite-de-gado-puro” já fumega e sobe no papeiro esmaltado branco de ágate, sobre a trempe do fogão de tijolo e barro acionado a carvão vegetal adquirido no Depósito do “seu” Pergentino e para o qual era indispensável o abano de palha de carnaúba. É lá, onde havia no centro da minha cidade, uma linda casa que eu amava. Tinha uma porta e um janelão alto de postigo de tariscas e o telhado muito alto, de madeira de carnaúba e começava ou terminava, tanto faz, na sala ornamentada por um cortinado duplo de renda, que se abria de par em par para a gente passar por ele para então entrar no corredor muito compriiiidooo. Uma camarinha, a segunda camarinha, mais uma sala, mais outra sala de área aberta e mais outra área aberta onde ficava a cozinha, depois outra área muito compriiiidaaa e o banheiro soltinho lá no final. Duas palmeiras não do mesmo tamanho, perfiladas davam entrada ao quintal que encontrava o céu, largo, grande, comprido, profundo, estavam lá marrecos, patinhos, galinhas e seus pintinhos, o galo que cantava bem alto de manhã, gatas escondendo gatinhos nas acumulações de tijolos, e roupas de bonecas penduradas no varal. O luar criava fantasmas assustadores nas folhas das bananeiras. Foi lá onde eu compreendi a dor eterna da morte. A primeira vez foi na hora do almoço ao voltar da escola. Minha mãe chorava na beira do fogão de barro. Um cheiro de comida boa estava no ar, vinha da panela. Por que minha mãe chorava? Por “daqui-aquela-palha”, ou por nada, ou talvez por muita vontade de fazer sofrer, o pai do qual nada cito, obrigou-a a matar a minha galinha “Branquinha”. Era a “Branquinha” que seria o almoço naquele dia. Mas, naquele dia e em muitos outros daquela semana não houve almoço. Só muita mágoa e silêncio. A panela criou mofo e foi jogada no lixo na outra semana. Nunca mais comi carne de animal na vida. A segunda vez que vi de novo a morte naquela casa foi o ataque fulminante do coração que levou meu pai às 5 horas da manhã quando ele se levantou para ir trabalhar em um júri. Foi desse episódio, em 1 de janeiro de 1966 que passamos da classe social alta para a mais sórdida e deprimente miséria. O meu irmão Babí foi assassinado na "Bandeira 2" madrugada, por três latrocidas. Fomos para a “Vila Ocelo”, nós duas. Lá encontramos gente pérfida, invejosa do nada que se tem, gente muito má. Dificuldades imensas, mas vencidas pela minha mãe com grande heroísmo. Mas, isso fica no denso véu do nada dizer.
Metade dos anos 50. Minha casa. Primeiros raios da manhã. O rádio Minerva Tropic Master (USA de 1941) tocava na PRE-9 a marchinha Chiquita Bacana “lá da Martinica se veste com uma casca de banana nanica” do ano de 1949, autoria de João de Barro e Alberto Ribeiro na voz de Emilinha Borba. Meu pai se aprontava para ir trabalhar no armazém Casa Cruz na Avenida Pessoa Anta, 108. Ele importava e exportava bebidas e fumos. Tinha nível de escolaridade superior, era advogado rábula, teólogo, candidato a cargos políticos, maçom expulso, jornalista, escrevia nos jornais Unitário; Correio do Ceará; Gazeta de Notícias; O Povo, era “alto comerciante”. Todos conheciam Humberto Cruz, frequentador assíduo da roda intelectual dos bancos da Praça do Ferreira onde discutia política e divulgava o espiritismo Kardecista. O cheiro da loção Quina-Petróleo, que segundo as indicações evitava a calvície e a canície, inebriava a hora da saída e um acréscimo de Lavanda Atkinsons completava os másculos aromas. O café-da-manhã estava na mesa, coberta com toalha de linho branco bordada com flores em Ponto-de-Cruz, o café Walkan aromático e saboroso, fazia par com as bolachas Cecí, a manteiga Lírio, o pão da Padaria Duas Nações e o leite natural (in natura) de Maranguape colocado na janela, sem que nenhum transeunte, trabalhador matinal mexesse, pelo ‘Seu’ Pêdo, o leiteiro que abastecia as famílias desde o raiar do dia.

O tempo prossegue a sua marcha.  Em meio às doces cenas matinais revejo a beleza de minha Mãe, (recordo muito às manhãs), o trio cosmético Regina, sabonete, talco e água-de-colônia, estão sobre a penteadeira de cedro com amplo espelho  que "engorda, entorta e afina" levemente e conforme o ângulo em que a gente  se posiciona, ela cheira à resfrecância do banho, sua cosmética consiste em Creme de Alface Brilhante, Óleo de Coco da Perfumaria Eva, desodorante Odo-Ro-No,o esmalte Cutex, Loção Camélia do Brasil (para evitar cabelos grisalhos), o rouge e o batn Naná, o Pó Coty não compacto e as fragrâncias de Helena Rubstein da Coty ou da Monterugya, há também o pequenino Perfume Quatro Rosas, a linha Caschemyre Bouquet, o Perfume frasco de meio litro de Perfume Parisiana.  O Perfume Royal Briar é considerado de mau gosto e usado por pessoas vulgares.  Então ela veste o califon, as três anáguas, a calçola  de pernas rendadas, o vestido de tafetá, calça as meias 3/4 Kendall e o sapato Luiz XV comprado na Sapataria Pio. Seu perfume preferido é Madeiras de Oriente, no frasco vintage  de luxo em madeira Sândalo ou então o perfume de marca Madame Rochas importado.

Os filhos do período pós-guerra são eufóricos, o mundo retorna à florescer.  Meu irmão é uma figurinha de cabeça raspada à máquina estilo nazi.  Veste calças curtas de suspensórios e um quépi dá um toque final ao visual paramilitar.  Eu sou uma figura esvoaçante vestida de organdi branco literalmente "emgomado"  e com anáguas de seda róseas detalhadamente uma sobrepondo-se à outra partindo do comprimento de cada uma, que dão a nuance de rosa suave, as meias de crochê compradas  na Loja O Gabriel e os sapatos Cara-de Boneca, comprados na Sapataria Primavera.  Rescendendo a  Lavanda York.  Pasta de couro, caderno Avante com o Hino Nacional escrito no verso, o meu Livro é o Livro de LIli, de Anita Fonseca em 1938, e o do Babi é o Livro Infância Brasileira de Ariosto Holanda.  Eu estou no Jardim da Infância e o Babo no primeiro ano Forte nos começos dos anos 60.


Meus brinquedos eram bonecas rígidas, sem articulações nenhuma, da Trol, mas meu padrinho alagoano Júlio do Carmo chegou de viagem e me presenteou com uma boneca Pierina. Tinha o corpo de pano, cabelos de nylon, e toda sua “vistosidade” estava no luxuoso vestuário. Ela jazia na caixa, só a mim entregue na ocasião do semestral vermicida Panvermina, horrorosas cápsulas amarelas gelatinosas que, aos berros, eram trituradas na boca e exalavam nauseante sabor de mastruço e que iriam propiciar a expulsão dos áscaris lombricóides em formato natural. Purgante realizado eu fungava sentida e olhava a Pierina, (eu não tinha lhe batizado sequer, com outro nome), loura, de bochechas róseas, luxuosa, mas falsa, eu não gostava dela, detestava aquele cheiro de boneca guardada, associava-a ao purgante, ela não era realmente “minha”, era da caixa, agora ali, tendo-a tão perto, via seus olhos azuis, a boca fria, e com raiva, dava uma olhada na calçola dela: de seda, pernas de renda! Ainda bem que logo ela retornava à embalagem e voltava para o fundo da mala. Um dia dei uma topada porque quis e quebrei a cara de porcelana da Pierina.



Eu amava era o meu Neguzinho pequinês, (irmão da Faisquinha da minha mamãe), um cãozinho pretinho de raça zero, de olhos dulcíssimos que sorriam para mim, morri também quando ele amanheceu enforcado atrás do armário querendo abocanhar uma ratazana. Ao lembrar dele as lágrimas embaçam estas letras...


Também havia o uso profilático diário de Emulsão de Scott, terrível sabor de peixe, o laxante de Leite de Magnésia de Phillips que emborrachava nos beiços, e o Iofoscal – a melhor de todas as odiadas medicações, eu lia os rótulos de todas elas.

Lia fotonovelas dos anos sessenta: Capricho, Grande Hotel, Destino, Ilusão. Assistia rádio novela, (adaptações de clássicos da literatura): A Cabana do Pai Tomás; O Morro dos Ventos Uivantes; ou as peças radiofônicas: Vladimir – O Rei dos Ciganos; A Madona das Sete Luas; O Direito de Nascer ( que parava a cidade ao meio-dia quando ia ao ar); Jerônimo – O Herói do Sertão, cujo ator principal era Cauê Filho, muitas das adaptações para o rádio eram feitas por Ivani Ribeiro ou Giuseppe Guiaroni. O patrocínio era de Colgate-Palmolive ou de Gessy-Lever, e o elenco era o dos atores da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Esse elenco dramatizou a Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo sob a supervisão de Guiaroni e cuja radiofonização vai ao ar, ainda, em algumas emissoras AM (amplitude modulada), no período da Semana Santa, do meio-dia às três da tarde. Lia revistas: A Cigarra; Filmelândia; Cinelândia; O Cruzeiro; Manchete; Seleções do Reader's Digest; as revistas dedicadas às leitoras infanto-juvenis como Primavera em Flor e todas as coleções de Walt Disney, inclusive as historinhas pelo rádio no programa Histórias da Vovó alguma coisa que não lembro. Uma tarde, mame me levou e a ela mesma, para conhecer a Vovó do programa, lá na emissora, Rádio Uirapuru, cujo prédio é em formato de rádio e está ainda em frente à Praça Clóvis Beviláqua ou Praça da Bandeira, ignorado do público e abrigando algo do governo. Esperávamos nos deparar com Ali Babá e os Quarenta Ladrões, com Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, com Alice no País das Maravilhas, com o Gato de Botas, mas o que vimos decepcionou: um lugar de trabalho, pessoas comuns, atarefadas, amassando folha de flandres para simular as tempestades, apertando banda de coco para simular o galope dos cavalos, que nem sequer nos deram atenção, a partir daí nos desinteressamos pelo programa. Mesmo porque, já conhecíamos todas as histórias.

No Brasil por volta de 62 a 64 em meio à efervescência política e da ditadura militar, surge o CPC da UNE, um movimento cultural e ideológico de inspiração Marxista, criado pelos estudantes, na Guanabara. Esse processo de tomada de consciência na história da cultura brasileira trazia a ideia de que os intelectuais deveriam organizar a cultura popular, para tanto, o intelectual teria de ser parte integrante do povo. Desses estudantes vieram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Zé Ramalho e outros. As suas músicas insinuavam a realidade e eram de protesto, do outro lado a ditadura colocava as músicas água-com-açúcar e sem comprometimento do movimento Jovem Guarda, para suplantar e alienar as mensagens das músicas de protesto. No exílio Caetano compôs para o amigo Roberto Carlos, então estudante de medicina, “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”. Muito depois eu entenderia a realidade desse período, mas sentia falta dos programas de televisão O Céu é o Limite, com perguntas e respostas a um inscrito (que receberia um prêmio milionário), sobre determinado tema, sob a apresentação de Blota Jr., ou o Programa Flávio Cavalcante... Os artistas aderiam aos movimentos de “esquerda”, eram torturados, exilados, assassinados, muitos morreram no exílio sob as ordens do regime ditatorial que eclodiu. Depois vieram os luxuosos programas para exportação, (da rede Globo), Programa Black & White; Fantástico - O Show da Vida; Chico City, bem como, dentre outras, as novelas O Bem Amado; Gabriela Cravo e Canela; Saramandaia; Roque Santeiro. Não era mais na minha casa, mas eu e minha mãe assistíamos TV na casa da Mãe Júlia Condante, filha de escrava e senhor.
O Sítio do Pica-Pau Amarelo, nos anos 70 fazia com que se viesse “voando” do Colégio, permanecendo de farda com saia azul e blusa branca, com logomarca no bolso da blusa, munida de biscoitos Cream Cracker Fortaleza e guaraná Kacique da Monteiro Refrigerantes e viajava nas asas da melodia. Nesse tempo o movimento Hippie pregava “a paz e o amor”, adotava profusão de margaridas e a liberdade de comportamento. Havia aqui em Fortaleza nos anos 70, jovens que nas suas residências nas noites dos sábados realizavam as Tertúlias. Instalavam a “luz negra”, (cobriam a lâmpada com papel de cor azul e demais cores) e as garotas de meias da novela “Dancing Days”, com perfume Vertige, ou Vetiver, dançavam soltas com os rapazes de calças Pantalonas e perfume Lancaster ao som da voz de Tina Turner das nove até meia-noite...


I

A minha rua começa na catedral metropolitana ou Igreja da Sé e termina no cemitério São João Batista ou vice-versa. É a Rua Castro e Silva. Nós tínhamos um telefone fixo de número com quatro dígitos, os primeiros telefones da cidade. Meu pai tinha dois Jipes, um comprado a um militar, era verde oliva, por isso chamado “jipe de guerra”; um Ford “de bigode” e uma caminhonete toda torta. Era na caminhonete que meu pai trazia água da Pirocaia. Era no jipe de guerra que meu pai nos levava (eu; meu irmão Babí; minha mamãe; a loura-papagaio; a galinha branquinha; faísca e neguinho, os dois pequineses), para desfilar no corso quando era carnaval, e no Ford de bigode ele passeava com a gente aos domingos, na praia do peixe, hoje Meireles e nos bairros distantes. Naqueles tempos ainda moravam as últimas famílias no centro. Não é possível dizer com exatidão, mas, de um lado morava a “dona Norina”, e sua filha Olenca (que enquanto minha mãe e a dela conversavam na porta, Olenca me dava grandes beliscões e puxava um fio só do meu cabelo por vez) do outro a “dona Lídia” e a sua prole: o Bebé; e muitos outros, talvez uns oito, meninos e meninas. Do outro lado da calçada morava a “dona Izaíra” e o “seu Mílton”, muito católicos e donos de uma lojinha de miudezas, como botões, fitilhos, etc., sendo parte constante a “tia Emília” irmã de um dos dois, e os filhos: Socorrinha; Elias e Izairton. O restante da rua era já muito comercial. Havia o Restaurante Olinda, três casas depois da minha, de comida requintada e acebolada, cujo dono-pai era o “seu Leônidas” e seus dois filhos iniciantes na administração, um deles o “Delzinho”, funcionava dia e noite. Uma noite “seu Leônidas” derrubou com uma vara de levantar as portas do restaurante, o “Mata-Sete” que esmolava comida aos clientes. Tempos depois “Mata-Sete”, que era “um menino” perigoso marginal ladrão e assassino, foi morto a facadas, foi quando foi revelada a idade dele, aquele “menino” que aparentava uns 8 anos de idade tinha de fato quase 30. De frente para a minha casa ficava o restaurante do “Toinho”, que fornecia comida para os comerciários, funcionava até ás 6 da tarde. Havia “O Rei dos Pneus” cujo dono era o “Bebê”, moreno gordo e simpático ornamentado de muito ouro, que atraia ‘multidões’ dos poucos abastados proprietários de carros da cidade. Também na outra calçada estava a Western Telegrafhic Co., empresa telegráfica, empregava os estafetas (rapazinhos que entregavam os telegramas); a Marcosa, indústria e comércio de Caterpillar ou tratores. Lá as senhoritas que trabalhavam eram muito elegantes, acompanhavam a moda das “Elegantes da Bangu”, coluna que saia numa revista, não sei qual. Duas lembranças, do mesmo lugar ficaram na minha memória, a da casa do lado direito: é que tempos depois, a “dona Lídia” saiu da casa. Nela se instalou a “Agência Tejuçuoca” cujo proprietário era o Alfredo Coelho. Na frente da minha casa de número 305, naquele sobrado, hoje emparedado, ficava o “Ginásio Apolo” de Halterofilismo, o único da cidade. Frequentado pelos rapazes da alta sociedade, incluindo dentre os demais os denominados “rabos-de-burro”, um grupo de rapazes de cabelos longos, muito atléticos, belos e ociosos, onde o chefe da turma era o “filho de papai rico” Ivan Paiva, morador em Parangaba, os quais iam para a frente dos colégios das moças para pegá-las, com um laço de corda. Eles eram o terror de Fortaleza dos anos 60. Até uns anos atrás se sabia que ele estava ancião numa cadeira de rodas. Ele citava essa frase que ficou famosa, “não sou o dono do mundo, mas sou o filho do dono”.

De uma ponta à outra da minha rua, do lado da minha calçada, na esquina do lado da Sé ficava a Padaria Duas Nações (Portugal X Brasil) e na esquina do cemitério ficava o “bar Corre-Frouxo”. Aberto dia e noite, sem portas, quando começava uma briga de bêbados dentro do bar o dono empurrava os brigões para fora e cercava o estabelecimento redondo, porque na esquina, com as mesas. Nos sons da minha rua estavam as músicas tocadas na vitrola com luzes coloridas do bar “Corre-Frouxo”, como esse xote e baião: “Gente olha a Zefa como dança o xaxeado / eita nêga da moléstia prá dançar côco e xaxado”. As músicas e as mensagens da radiadora do atual bairro Arraial Moura Brasil, nesse tempo o “curral” (gueto) que começou com o cortiço dos sertanejos retirantes da seca de 1932 e se transformou em lugar do baixo meretrício. De lá o vento trazia nas tardes de cristal a voz de Núbia Lafayete: “Seria tão diferente se a gente que a gente gosta / gostasse um pouco da gente / seria tão diferente”. E as mensagens na voz pomposa (exposta vaidosamente) do locutor: “Alôr, alôr Brigite Bardot! Alguém lhe manda esta ‘musga’ com muito amor e carinho!”. Brigite foi uma loura mariposa que numa noite foi assassinada a tiros, na calçada da minha casa, por ciúmes, pelo seu amante policial civil. Quando era carnaval vinha nos sons e nos aromas da noite o cheiro e o tilintar dos copos de cerveja dos bares, das boates, dentre outras a Boate 80. Dos clubes como o clube Guarani. O cantor mais requisitado era Nozinho Silva. Sua voz enchia a noite de marchinhas. “Êêêêê! Índio quer apito / se não der pau vai comer!”.

Esse é um depoimento para a Web, para complementar tantas outras narrativas de boa vontade e de significativas expressões histórico-documentais. Hoje aquela casa que era grande porque eu era pequena daquela rua boêmia do centro da cidade que destrói edificações históricas e se envergonha de ter memórias, bem junto ao mar, não é mais a minha casa. Até trocaram os números. A verdadeira 305 é a loja do lado direito de quem chega. E eu anonimamente todas as tardinhas chego lá.


LEMBRAR DE CASA - Antoine de Saint-Exupèry

Havia, em algum lugar, um parque cheio de pinheiros e tílias e uma velha casa que eu amava.

Pouco importava que ela estivesse distante ou próxima, que não pudesse cercar de calor o meu corpo, nem me abrigar, reduzida apenas a um sonho.

Bastava que ela existisse para que a minha noite fosse cheia de sua presença. Eu não era mais um corpo de homem perdido no areal. Eu me orientava. Era o menino daquela casa, cheio da lembrança de seus perfumes, cheio da fragrância dos seus vestíbulos, cheio das vozes que a haviam animado.

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CAFÉ HISTÓRIA ACADÊMICO


PARCEIROS



















































(Memórias Do Tempo Que A Vida Conta-Altair Andrade Da Cruz-170213)

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