domingo, 19 de junho de 2016

DEVANEIOS - DE MEMÓRIAS DE 9 ANOS (3)

Tenho Cara De Antigamente, Quando Criança Curiosa Estava Descobrindo A Vida
CICLO DA INFÂNCIA COM O EGOÍSMO DA CRIANÇA

Tenho Cara De Antigamente, Sou Do Tempo Em Que Perfume Era Extrato
AS PALAVRAS TÊM PODER
terça-feira, 6 de maio de 2014
DEVANEIOS - DE MEUS 9 ANOS (3)
1940/1945 (1942)
Olhem a sombra ao pé do casarão onde morei durante seis anos; Pode ser onze horas ou treze horas, mas era o ano de 1942 e eu tinha nove anos. No lado da sombra estava a porta de entrada; na frente ensolarada, três janelões num quarto imenso onde dormiamos quatro crianças e duas primas; No primeiro andar, Dr. John Mein, americano e D. Elishabeth, inglesa. Ali curti dos seis aos onze anos, tempo da Guerra.
Minha irmã Marlu tinha uma amizade grudenta com a Sônia Correia Lins, irmã de Sílvio; gordinha, baixinha, miopezinha e educadazinha; morava no bairro de Espinheiro, mais ou menos próximo de nós, lugar chique em casa com paredes externas cobertas de hervas trepadeiras verdíssimas e vinha todos os dias `à tarde, de bicicleta, fruta rara e capaz de abrirem-se todas as janelas de uma rua para apreciá-la. Não existindo as expressões de hoje, como legal e bacana, dizia-se batuta. Não tinha luxo e me deixava ficar naquela calçada em sombra, indo e vindo com a sua máquina quando minha altura pouco dava para lhe sustentar os dois guidãos. Em tempos de guerra, ali era tempo de paz; não havia riscos quanto aos bondes nos seus trilhos, não havia malfeitor nem ladrões. Como pode o comportamento das gentes em setenta anos mudar de ótimo para péssimo, de se ver a maldade das almas expluirem assim para infernizar um antigo céu! A Sônia hoje é uma Dentista ai no Sul e a Marlu, uma pedagoga aqui no Norte. E a vida surpreendendo `à todos.
Naquele tempo ainda havia a praga da tísica que ceifava muitas vidas ainda jóvens. Dizia-se de gente perguntadeira, que tinha ouvido de tubrculoso. Era uma doença tão marcante e tão temida pelo medo de contaminação, pelo nojo que causava o catarro amarelento do escarro que era um sofrimento moral bravo de quem tinha a má sorte de possuir esta doença. Porisso ficavam de orelhas espertas e em pé para verem se estavam sendo notados e discriminados. Minha querida Tia Maria, irmã de meu pai, casada com um homem boníssimo de alma e coração, o Tio Luiz, saiu do Pina e foi pra nossa companhia naquele casarão; Ficava conosco os seis meninos naquele imensidão de quarto, com minha mâe como enfermeira e sua auxiliar, d.Maria da venta-chata, negra da antiga escravidão, de carapinha inteiramente branca, queridíssima de todos nós, nas aflições e nas alegrias. O meu querido Tio Luiz também tinha uma bicicleta e na garupa um enorme cesto quando ele chegava diariamente carregando uma infinidade de verdes para amada mulher, num amor mais próprio daqueles tempos. Assim foi e se mudaram para Vitória de Santo Antão de clima apropriado para estes males. Quente como é o Nordeste, mas ao cair da tarde, repentinamente a temperatura desaba para bate-dentes comuns naquelas plagas. Viveram muito os dois e num momento voltaram para sua casa, no Pina; num outro momento ambos atropelados por um auto se despediram juntos, deixando órfãos seis filhos queridos.
Enfim meu queridíssimo Tio Amaro, irmão da Tia Maria e do meu Pai. Modesto, no nosso casarão, num mês de junho chuvoso, com cheiro de pólvora e enorme fartura de milho verde, de canjica, de pamonha e de balões hoje proibidos, numa enorme belezura. No quintal de nossa casa, um mundão de mangueiras, Rosa, Espada e manguitos comuns cheirosos como se fosse um fruto-copo cheio de refresco. Que infância maravilhosa. Meu Pai, o Pastor Lívio, fechava um pouco os olhos contra a sua ranzinzice religiosa e até uma fogueira em qualquer São João, fizemos. Numa algazarra meio torta, parecendo festa junina e também festa natalina, enchiamos frasquinhos pequeníssimos de extrato que era o nome do que hoje é perfume, então passávamos extrato em vez de "sprayar" perfume, com papel crepom de várias cores, que a qualquer toque de água coloria o conteudo dos frasquinhos que estavam amarrados nos galhos secos de mangueira, para quem quisesse levar, e alegrar os coraçõezinhos de nossa fraternidade infantil, pelo reconhecimento das gentes grandes de que nós existiamos. Meu Tio Amaro, de pouco falar, de uma predileção especial por mim, desde eu depois de casado e já com sete filhos, ele nos visitando, fazia desenhos com um garrancho na areia dura em redor da fogueira, sempre de rostos em perfil, como só os egípcios sabiam fazer. Meu amado tio, um dia deitou alegre junto de sua Nicinha e acordou pela manhã, morto. Não incomodou ninguém na sua passagem, era homem de bem.

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