domingo, 17 de novembro de 2013

DEVANEIOS - DE "O MELRO" (171113)

GUERRA JUNQUEIRO - Poeta Luso - Faço versos por uma simples fatalidade orgânica

Tenho Cara De Antigamente, Quando Fazer Poesia Era Como Uma Necessidade Fisiológica
DO MESMO MODO COMO UMA MANGUEIRA PRODUZ MANGA
Meu Filho Rico, Matuto No São João

(Valores Básicos Da mente)
"AFETO - CONHECIMENTO -VONTADE"

"A vontade é o desejo tornado adulto"


O  melro,  eu conheci-o!  Era negro, vibrante, luzidio,
madrugador, jovial;  logo de manhã cedo
começava a soltar, dentre o arvoredo, verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta que dá para o passal,
repicando umas finas ironias, o melro de entre a horta,
dizia-lhe!  "bom-dias!"  E o velho padre-cura
não gostava daquelas cortesias

O cura era um velhote conservado, malicioso, alegre,prazenteiro!
não tinha pombas brancas no telhado, nem rosas no canteiro!
Andava as lebres pelo monte , a pé, livre de reumatismos,
graças a Deus, e graças a Noé, o melro desprezava os exorcismos,
que o padre lhe dizia!  cantava, assobiava alegremente;
até que ultimamente o velho disse um dia!

"Nada, já não tem jeito  este ladrão dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão por que Deus fez os melros e os pardais!!"
e o melro , no entretanto, honesto como um santo,
mal vinha no oriente a madrugada clara,,
já ele andava jovial, inquieto, comendo alegremente, honradamente, 
todos os parasitas da seara desde a formiga ao mais pequeno inseto,
e apesar disto, o rude proletário, o bom trabalhador,
nunca exigiu aumento de salário.  Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo;  e, armando uns espantalhos,
disse o abade consigo!  "Acabaram-se as penas e os trabalhos."
Mas logo de manhã, maldito espanto!  o abade ainda na cama.
ouvindo do melro o costumado canto, ficou ardendo em chama;
Pega na caçadeira, levanta-se dum salto,
e vê o melro, a assobiar, na eira, em cima do seu velho chapéu alto!

Chegou a coisa a termo que o bom do padre-cura andava enfermo;
não falava nem ria, minado por tão íntimo desgosto;
e o vermelho oleoso do seu rosto tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura, (muito embora o leitor não me acredite)
que o bom do padre-cura perdera... o apetite!

Andando no quintal, um certo dia, lendo em voz alta o velho-Testamento, 
enxergou por acaso (que alegria!  que ditoso momento!)
um ninho com seis melros, escondido entre uma carvalheira.
e ao vê-los exclamou enfurecido!

"A mãe comeu o fruto proibido;  esse fruto era a minha sementeira;
era o pão e era o milho; transmitiu-se o pecado.
E se a mãe não pagou que pague o filho, é doutrina da Igreja.  Estou vingado!"

E engaiolando os pobres passaritos, soltava exclamações!
"É uma praga.  Malditos!  dá-me cabo de tudo estes ladrões!
raios que o partam!  andai lá que enfim..."

E deixando a gaiola pendurada, continuou a ler o seu latim,
fungando uma pitada.

Vinha tombando a noite silenciosa;  e caia por sobre a natureza
uma serena paz religiosa, uma bela tristeza
harmônica, viril, indefinida,.  A luz crepuscular
infiltra-nos na alma dolorida um misticismo heroico e salutar.
As árvores, de luz linda doiradas, sobre os montes longínquos, solitários,
tinham tomado as formas rendilhadas das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.  Dormiam virginais as coisas mansas!
os rebanhos e as flores, as aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade,;  a sua negra atlética figura
destacava na frouxa claridade, como uma nódoa escura.
E, introduzindo a chave no portal. murmurou entre dentes;
"tal e qual...  tal e qual!...  guizados com arroz são excelentes."

Nasceu a Lua.  As folhas dos arbustos tinham o brilho meigo, aveludado,
do sorriso dos mártires, dos justos, um eflúvio dormente e perfumado
embebedava as seivas luxuriantes.  Todas as forças vivas da matéria
murmuravam diálogos gigantes pela amplidão etérea.
São precisos silêncios virginais, disposições simpáticas, nervosas,
para ouvir estas falas silenciosas dos mundos vegetais.
As orvalhadas , frescas espessuras pressentiam-se quase agerminar.
Desmaiavam-se as cândidas  verduras nos magnetismos brancos do luar.

E nisto o melro foi direto ao ninho, para agasalhar, andou buscando
umas penugens doces como arminho, um feltrosito acetinado e brando.
Chegou lá e viu tudo.  Partiu como uma frecha;  e , louco e mudo,
correu por todo o matagal;  em vão!  mas eis que solta de repente um grito
indo encontrar os filhos na prisão.
"Quem vos meteu aqui!"  o mais velhito todo tremente, murmurou então!

Foi aquele homem negro. -- Quando veio. chamei, chamei... andavas tu na horta...
ai que susto, que susto!  ele é tão feio!...  tive-lhe tanto medo!...  abre esta porta,
e esconde-nos debaixo da tua asa!  olha já vem florindo as açucenas;
vamos construir a nossa casa num bonito lugar...  ai!  quem me dera , minha mãe,
ter penas para voar, voar!"  e o melro alucinado clamou!

"Senhor!  Senhor!  é porventura crime ou é pecado.
que eu tenha muito amor a estes inocentes!  Ó Natureza, ó Deus, como consentes
que me roubem assim os meus filhinhos,  os filhos que eu criei!!
quanta dor, quanto amor, quantos carinhos, quanta noite perdida
nem eu sei...  e tudo, tudo em vão!  filhos da minha vida filhos do coração.!!!...
não bastaria a natureza inteira, não bastaria o céu para voardes,
e prendem-vos assim desta maneira!... covardes!
a luz, a luz, o movimento insano, eis o aguilhão, a fé que nos abrasa...
encarcerar a asa é encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu!  quase a noitinha parti, deixei-os sós...
a culpa tive-a eu, a culpa é minha.  De mais ninguém!...  que atroz!
e eu devia sabê-lo!  eu tinha obrigação de adivinhar...
remorso eterno!  eterno pesadelo!...

Falta-me a luz e o ar!... oh, quem me dera ser abutre ou ser fera
para partir o cárcere maldito!...  e como a noite é límpida e formosa!
Nem um ai, nem um grito...  que noite triste!  oh noite silenciosa

E a natureza fresca onipotente, sorria castamente
com o sorriso alegre dos heróis.  Nas sebes orvalhadas,
entre folhas luzentes como espadas, cantavam rouxinóis.

Os vegetais felizes mergulhavam as sôfregas raizes
a procurar na terra as seivas boas, com a avidez e as raivas tenebrosas
das pequeninas feras vigorosas sugando a noite os peitos das leoas.
A Lua triste, a Lua merencória, Desdemona marmórea
rolava pelo azul da imensidade;  imersa numa luz serena e fria,
branca como a harmonia, pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons e as flores,, na atonia cruel das grandes dores,
o melro solitário, jazia inerte, examine, sereno, 
bem como outrora a mãe do Nazareno na noite do calvário!...
segundo o seu costume habitual, logo de madrugada
o padre-cura foi para o quintal, levando a bíblia e sobraçando a enxada.
Antes de dizer missa, o velho abade inevitavelmente
tratava da hortaliça e rezava ao Deus Padre Onipotente
vários trechos latinos, salvando desta forma juntamente,
as ervilhas, as almas e os pepinos.  E já de longe is bradando!

-- Olé!  dormiram bem!...  estimo...  eu lhes darei o mimo.
canalha vil, grandíssima ralé!  então vocês, suas almas do diabo,
julgavam que isto que era só dar cabo da horta e do pomar.
e bico alegre e estômago contente, e o camelo do cura que se aguente,
que engrole o seu latim e vá vigiar!...  grandes larápios!   era o que faltava
vocês irem ao milho, e a mim mandarem a fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho, eu vos ensinarei, meus safardanas!
vocês são mariolões, são ratazanas,  tem bico, é certo, mas não tem tonsura...
e nas manhas um melro nunca chega as manhas naturais de um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega é pra hoje, olé... que bambochata!
que petisqueira!  melros com chouriço!... e então a Fortunata
que tem  um dedo e um jeito para isso!...hei de comer-vos todos um a um,
lambendo os beiços, com tal gana enfim, que comendo-vos todos , mesmo assim
eu fico ainda quase que em jejum!  e depois de vos ter dentro da pança,
depois de vos jantar, vocês verão como o velhote dança, 
como ele é melro e sabe assobiar!...
Mas nisto, o padre-cura titubeante, quase desfalecendo,
atônito de horror , parou diante deste drama estupendo!

O melro, ao ver se aproximar o abade, despertou da atonia,
Lançando-se furioso sobre a grade do cárcere.  Torcia,
para os partir, os ferros da prisão, crispando as unhas convulsivamente,
com a fúria de um leão.  Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas, e alucinado, exangue,
os olhos como brasas, herói febril a  gotejar em sangue,  
partiu num voo arrebatado e louco, trazendo, dentro em pouco,2
preso ao bico um ramo de veneno, e belo e grande e trágico e sereno,
disse! -- Meus filhos, a existência é boa só quando é livre.  A liberdade é a lei,
prende-se a asa, mas a alma voa... Ó filhos, voemos pelo azul!...  Comei!"

É mais sublime do que Cristo, quando morreu na cruz, maior do que Catão,
matou os quatro filhos, trespassando quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente gargalhada  de lágrimas, de dor,
e partiu pelo espaço heroicamente, indo cair , já morto, de repente
num carcavão com silveiras em flor.

E o velho abade lívido de espanto, exclamou afinal!
"Tudo que existe é imaculado e é santo!  há em toda miséria  o mesmo pranto
e em todo coração há um grito igual.  Deus semeou de almas o universo todo.
Tudo foi feito com o mesmo lodo, purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência, só hoje te adivinho,
ao ver que a alma tem a mesma essência, pela dor, pelo amor, pela inocência,
que guarde um berço, que proteja um ninho!  só hoje sei que em toda criatura,
desde a mais bela até a mais impura, ou numa pomba ou numa fera brava, 
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!...Ah, Deus é maior do que eu julgava...!

E quedou silencioso. O velho mundo, das suas crenças antigas, num momento
vi-o sumir exausto, moribundo,  nos abismos sem fundo
do tenebroso mar do pensamento.  e chorou e chorou... a Igreja, a Crença,
rude montanha , pavorosa, escura, que enchia o globo com a sombra imensa
dos seus setenta séculos de altura;  o Himalaia de dogmas triunfantes,
mais eternos que o bronze e o granito, onde aos profetas Deus falava dantes,
entre raios e nuvens trovejantes, lá dos confins sidéreos do infinito;
esse colosso enorme , em dois instantes vi-os tremer, fender-se e desabar
numa ruína espantosa, só de tocar-lhe a asa vaporosa
de uma avezinha trêmula a expirar!...

E arremessando a bíblia , o velho abade murmurou!
"há mais fé e há mais verdade, há mais Deus com certeza
nos cardos secos de um rochedo nu que nessa bíblia antiga... Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!..."


NOTA
Os melros quando lhes encarceram os filhos envenenam-nos.  Muitas vezes, deixando-os vivos, arrancam-lhes a língua!  Nem todos assassinam os filhos.  Só os mais extraordinários e heroicos.  O que demonstra que a ação é livre e não um simples produto de uma fatalidade orgânica.
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