Ponto de Vista: Martin
Buber
VEJA, maio de
1948
O pensador judeu critica a criação de
Israel, defende
o entendimento com os árabes e ataca os terroristas hebraicos: 'Não é
possível alcançar a redenção através do pecado'
uando nós, os judeus,
retornamos à Terra Santa depois de muitas centenas de anos, agimos como se
essa terra estivesse vazia, sem habitantes. Pior ainda: agimos como se o povo
que estava ali não nos afetasse, como se não fosse preciso lidar com ele,
como se aquele povo não nos enxergasse. Mas eles nos enxergam. Ainda assim,
não prestamos atenção a isso. Não admitimos que existe apenas um caminho:
formar uma parceria séria com esse povo, o envolvendo de forma sincera na
construção da nossa terra, cedendo uma parte de nosso trabalho e também
compartilhando os frutos desse trabalho. Ao invés disso, temos jovens na
comunidade judaica que gostam de pensar que são iguais a Sansão. Eles acham
que colocar minas no caminho de veículos de inocentes e indefesos não-judeus
é algo parecido com as façanhas do antigo herói.
Creio que não haja ninguém entre nós
que enxergue algum desses assassinos como um Sansão contemporâneo. Por quê?
Porque o verdadeiro Sansão lutou frente a frente contra um grupo bem armado e
que era maioria. Mais ainda: porque o terrorismo não é uma forma legítima de
travar a guerra. E nossa atitude em relação aos árabes? Quase todos nós
sabemos distinguir entre os terroristas árabes e o povo árabe. Mas não esperem
que os árabes sejam capazes de distinguir entre nossos assassinos e o povo
judeu por muito mais tempo. Nesse contexto, como chegar a um entendimento com
os árabes? É verdade que há aqueles entre nós que consideram tal entendimento
desnecessário e até prejudicial. Mas só os políticos que mais se iludem podem
imaginar que nossa comunidade existirá para sempre sem o entendimento e a
cooperação com os árabes.
Neste momento crítico, quem encoraja
as erupções de violência cega ameaça a própria existência da comunidade
judaica. Tudo o que foi construído com tanto trabalho e tanto sacrifício,
pedra a pedra, pode ser destruído no caos para onde esses pretensos sansões
nos arrastam. Cada golpe que eles acreditam desferir no inimigo fere, na
verdade, a nós. Eles são suicidas, mas não como Sansão, que matou 3.000
filisteus na hora de morrer. São suicidas porque arrasam tudo o que foi
cultivado por várias gerações de pioneiros dedicados e abnegados. Não temos o
direito de fazer isso. "Não matarás", está escrito. Quem mata como
eles acaba matando seu próprio povo. Eis a maior e mais fraudulenta decepção
de todas: a de que é possível alcançar a redenção através do pecado. Se o
povo justifica o assassinato e se identifica com quem o comete, então aceita
esse pecado como seu - e deixa aos seus filhos não uma terra livre e pura, e
sim uma toca de ladrões.
Paz genuína - A luta em nossa terra está
transbordando numa violência bárbara que se espalha com a velocidade da luz e
não poupa nem os velhos, mulheres e crianças. Há pouco tempo, a cidade de
Tel-Aviv era capaz de garantir que qualquer árabe pacífico e amante da paz
não tinha nada a temer quando caminhasse por suas ruas. Hoje, qualquer judeu
que ousa andar por um bairro árabe se arrisca a morrer - assim como qualquer
árabe que entra numa área judaica. Judeus ainda são salvos por árabes, e
árabes ainda são salvos por judeus, às vezes ao custo de enorme risco. Mas o
número de assassinatos de pessoas inocentes está disparando - e são
assassinatos cometidos à luz do dia, diante dos olhos do público e até da
polícia. Não podemos destruir, com nossas próprias mãos, a fundação moral de
nossa vida e de nosso futuro.
A pressa febril com que tentamos obter
a declaração de independência de um estado judeu, como se fosse o último
momento da história em que seria possível colocar o programa sionista em
prática, foi o que nos empurrou para a crise que vivemos hoje. Os antigos
hebreus não tiveram sucesso na tentativa de formar uma nação normal. Hoje, os
judeus estão avançando nesse caminho num ritmo assustador. Pertenço a um
grupo que, desde os tempos em que a Grã-Bretanha dominou a Palestina, não
desistiu de lutar pela conquista da paz genuína entre judeus e árabes. Com
"paz genuína" queremos dizer que ambos os povos devem desenvolver a
terra juntos, sem que um imponha sua vontade no outro. Isso parece ser muito
difícil, mas não impossível. Nesse caso incomum (e até mesmo inédito), é
questão de se buscar um novo caminho de compreensão e entendimento cordial
entre as nações.
Consideramos um ponto fundamental o
seguinte fato: há duas reivindicações contrárias uma à outra, duas
reivindicações de naturezas e origens distintas, que não podem ser colocadas
uma contra a outra. É impossível tomar uma decisão objetiva entre qual delas
é justa ou injusta. Consideramos nossa missão entender e honrar a
reivindicação contrária à nossa. Ambicionamos reconciliar as duas
reivindicações. Não podemos renunciar à reivindicação judaica; a ligação com
essa terra é algo superior até à vida do nosso povo - esse trabalho é a sua
missão divina. Mas estamos convencidos de que deve ser possível encontrar
alguma forma de acordo entre uma reivindicação e a outra. Amamos essa terra e
acreditamos em seu futuro. Vendo quanto amor e quanta fé há também no outro
lado, achamos que uma união no serviço comum da terra está no alcance do
possível. Onde há amor e fé, uma solução sempre pode ser encontrada - mesmo
quando isso parece ser uma trágica contradição.
• Martin Buber, de 70 anos, é filósofo, teólogo,
professor e educador. Nascido em Viena, é um dos grandes pensadores do
sionismo, movimento a que está ligado há meio século. Ex-editor do semanário Die Welt, principal órgão de imprensa
dos sionistas, e da revista Der
Jude, publicação mensal dedicada à comunidade judaica alemã, foi
professor da Universidade de Frankfurt am Main. Renunciou logo depois da
ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933. Proibido de dar palestras, ainda fundou
um centro de ensino judaico
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sábado, 30 de novembro de 2013
DEVANEIOS -DE DOIS POVOS NUMA MESMA FRONTEIRA
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